A Índia é uma experiência sensitiva de gradientes extremos, que roçam o impossível. É uma experiência não tangível nas representações correntes da realidade. Peçam a alguém que a descreva...
Tudo nela se multiplica, próximo do expoente da loucura. Tudo nela se esquiva à medida certa das palavras, aos traços no papel onde o reflexo da luz queima os olhos, ao enquadramento das lentes. As memórias sucedem-se numa voragem que procura o termo certo, a ilustração correcta, mas que esconde o ridículo do vazio do seu significado. Nas mantas de retalhos que constituem a nossa memória e que só fazem sentido para quem as cerziu, consomem-se as memórias mais vividas quando os últimos traços de especiarias abandonam o organismo.
A Índia é inverosímil. Lembras-te de Bombaim? É assim mesmo! - Como se a visita seguinte tivesse aumentado a estupefacção, verificando a credibilidade do que testemunhara, na cumplicidade dos que já a viveram. A Bombaim, sincrética da Metrópolis de um outro Fritz Lang neurótico; de um Blade Runner sem tecnologia; Casbah árabe e City americana, caótica, imensamente suja e bela. Esqueçam Nova Iorque, é esta a derradeira Babel...filas intermináveis de barracas miseráveis pintadas com o logo da Pepsi-Cola, publicidade à IBM enquadrando slums.
Inebriados pela intensidade e diversidade, não é fácil apercebermo-nos que a índia é também uma experiência violenta mente física. Quando visitada fora dos domos assépticos dos packages turísticos, é um murro nos queixos, nas verdades, nas convenções ocidentais, nas coisas que temos corno certas. É o desafio último à inocência e introdução a um perigoso cinismo terminal. Nocauteados, descobrimo-nos estranhamente atentos...
Por tudo isto é difícil limitarmos esta edição exclusivamente à nossa experiência. Esta publicação pretende ser um caderno de viagens. Apontamentos avulsos da índia que cada um de nós construiu. Partilhamos nela reflexões pessoais, por vezes digeridas em provas académicas, mas não nos limitamos a elas, conscientes das limitações próprias da juventude ou simples falta de proficiência na arte narrativa, desenhada ou impressa em emulsões. Abrimos o leque ao olhar do desenho de Álvaro Siza ou de Fernando Távora; às memórias vividas em permanência de Paulo Varela Gomes; entrevemos história nas albuminas antigas; descobrimos os derradeiros dias de Diu antes da anexação. Todas acrescentam à nossa, outras experiências, e paradoxalmente ilustram-na.
Bombaim, Diu, Damão, Goa, Agra, Fatepur-sikri e Delhi foram paragens do nosso itinerário físico. Mas outras foram as nossas viagens. Trocar a viagem de finalistas a um qualquer destino pré-fabricado, por uma visita de estudo à índia, em que seriamos nós próprios a elaborar trajectos e calendários, a angariar apoios, foi apenas metade do desafio.
Todo este projecto foi consequência duma provocação do nosso professor de História da Arquitectura Portuguesa, Walter Rossa, no finai de urna aula ainda em Novembro de 1998. Rapidamente o outro indiano, Paulo Varela Gomes, também daria o seu insubstituível conhecimento e dedicação.
Aquilo, que no principio, era um objectivo impossível de alcançar, acabou por se tornar uma verdadeira lição e a melhor aula da escola, derradeira enquanto alunos e primeira enquanto Arquitectos e Seres Humanos. Nenhum de nós fugiu do lugar comum, nenhum de nós voltou o mesmo. A quem, mais do que nós, acreditou neste projecto e fez dele realidade, esta publicação é, antes de tudo o resto, a nossa forma de os celebrarmos.