Do alto dos seus 80 anos, Aguilar consegue mais uma vez se superar e nos surpreender, como tem feito desde os anos 60 na pintura, escultura, performance, música, videoarte e literatura — de onde brota agora O Salvador do Mundo, seu sexto livro, como uma cápsula de otimismo nesses tempos duros de pandemia e destruição; um bem-vindo happy-end ao filme de terror.
Com uma linguagem direta e ágil, de frases curtas, que lembra o estilo dos romances modernistas de Oswald e Mario de Andrade, Aguilar tece a trajetória de um personagem que se desdobra em vários, descobrindo-se e autotransformando-se sucessivamente, numa saga iniciática que flui como um filme de ação, pontuado por referências culturais — dos clássicos ao pop, da filosofia ao cinema, da música erudita à popular, dos antigos aos modernos, do ocidente ao oriente — que irrompem como portas no corredor do enredo.
Inicialmente impermeável a qualquer emoção (incluindo cores, olfato, tato ou prazer sexual), o protagonista passa a representar a si mesmo para os outros, aparentando normalidade. O impressionante é ele ter consciência de sua condição (“eu simplesmente não tenho nenhum sentimento dentro de mim”), ao contrário de Truman (do filme The Truman Show), por exemplo, onde o protagonista era o único a não saber que vivia um grande simulacro.
Misto de fábula, aventura, romance policial, reflexão filosófica e ficção científica, O Salvador do Mundo realiza a proeza felina de narrar sete vidas em uma — Zé da Merda, José de Almeida Silva, José Lourenço Pinheiro, Parakê, Zé das Flores e O Salvador do Mundo (habitante do lixão, contrabandista, aluno de filosofia, advogado e contador, ator, ecólogo indigenista, inovador tecnológico) — percurso que metaforiza uma espécie de caminho da iluminação — do vazio interior ao aprendizado das emoções (através da natureza), do sentir ao ser (através do feminino) e do ser ao ser outro (através da tecnologia).
A passagem de Zé da Merda para Zé das Flores, como um avesso da equação de João Cabral em sua Antiode (“poesia te escrevia: / flor! conhecendo / que és fezes”), faz a transição da representação para o ser — o que nos remete à experiência de Aguilar com a linguagem da performance, que não se propõe a representar de um papel, como no teatro, mas a assumir a presença integral, com toda a intensidade possível, nas situações inusitadas vividas em público. Não à toa, quando começa a desabrochar para sensações e sentimentos reais, o protagonista abandona o sucesso que vinha obtendo como ator num grupo de teatro, onde aperfeiçoara a dissimulação da vida interior que lhe faltava.
Os nomes que o pajé da aldeia indígena que ele então visita dá a suas duas metades (a que está presente e a que lhe falta) — Parakê e Ionusé — formam um verdadeiro haikai metafísico, no qual se relacionam pergunta e resposta, razão e sensação, cultura e natureza: “— para quê? / — yo no sé”. A partir dessa revelação a linguagem parece encarnar a busca do personagem, em digressões como a conversa com o boto, os pensamentos dele em primeira pessoa, a viagem virtual com a máquina de indução neural, até a surpreendente salvação do mundo.
Ao substituir “pátria” (da expressão-clichê “salvador da pátria”) por “mundo” no título de seu livro, Aguilar lança sua flecha para além dos nacionalismos anti-imigratórios, negacionistas e neonazistas que empesteiam a humanidade.
Num tempo em que assistimos a uma inversão radical de valores, tempo de fake news e cultura do ódio, quando os atos mais sórdidos são naturalizados, onde o execrável é aplaudido e o que era motivo de vergonha se torna razão de orgulho, Aguilar nos presenteia com esse triunfo da improvável empatia contra a crescente insensibilidade.
Arnaldo Antunes
José Roberto Aguilar nasceu em São Paulo em 1941. Pintor, videomaker, performer, escritor, compositor, revela ao longo de sua carreira a facilidade de transitar de um suporte a outro com grande desenvoltura. Aparece na cena artística brasileira no início dos agitados anos 1960, quando é selecionado para participar da VII Bienal de São Paulo. A partir daí integra as mais importantes manifestações artísticas do país. Seus trabalhos e intervenções ao longo de seis décadas vão desde a pintura — passando por videoarte, videoinstalações, performances — à liderança da Banda Performática, que aliava pintura, música, teatro e circo em shows que reuniam grande plateia em praça pública. A atração pela literatura e pela mitologia é constante na produção do artista, que se apropria da escrita e dos signos, fazendo-os elementos integrantes em suas telas. É autor de cinco livros de ficção — A divina comédia brasileira, A canção de Blue Brother, Hércules Pastiche, A Revolução Francesa de Aguilar e Tantra coisa: Insights de um voyeur — e de algumas composições musicais. É também um dos pioneiros da videoarte no Brasil. Com mais de sessenta anos de presença no panorama cultural, consolidou uma posição ímpar, que se caracteriza pela diversidade e coerência.