• Bolsonarismo e necropolítica

Quem decide sobre a vida ou a morte no Brasil contemporâneo? Fazemos esta pergunta diante dos mais de 500 mil óbitos provocados pela Covid-19 no país, o que nos coloca entre os maiores impactados pela pandemia do novo coronavírus em todo o mundo. Enquanto outros países, como os distantes Nova Zelândia e Coréia do Sul, ou o vizinho Uruguai, não mediram esforços para adotar o lockdown a fim de conter o ritmo da transmissão, e conseguiram manter sob controle o avanço da doença em seus territórios, nossos governantes optaram por estratégia diametralmente oposta. Em nome da preservação da economia se evitou a todo custo adotar medidas mais restritivas de isolamento social, com o Governo Federal se recusando a implementar uma política nacional de enfrentamento da crise sanitária.

As declarações e atitudes do Presidente Jair Bolsonaro desde a confirmação dos primeiros casos tem oscilado entre o negacionismo e o desprezo: chamou a Covid-19 de “gripezinha”; se recusou a usar máscara em público; promoveu aglomerações; recomendou a utilização de remédios sem eficácia comprovada; convocou os cidadãos a deixarem de ser “maricas”. Embora tenha se inspirado em líderes internacionais como Donald Trump (EUA) e Boris Johnson (GB), devemos reconhecer que Bolsonaro foi mais firme em seu posicionamento do que os ícones da nova direita mundial, mesmo com o país batendo sucessivos recordes de novos casos e de mortes não recuou em sua postura ou retirou suas palavras ofensivas.

A verve do “Capitão” é conhecida desde os mandatos como deputado federal, no entanto, se naquela época lhe rendia o rótulo de “polêmico”, uma vez no mais alto posto da política nacional esta característica tão marcante só fez aprofundar a crise em que seu governo está mergulhado desde a posse. Entrou em rota de colisão com os governadores que propunham o isolamento social como principal medida de enfrentamento, elegendo como maiores adversários aqueles à frente dos dois estados mais ricos do país (RJ e SP), chegou a tentar intervir na atuação dos estados da federação através da Medida Provisória nº926/2020, que estabelecia que somente as agências reguladoras federais poderiam editar restrições à locomoção. Batalha da qual acabou saindo derrotado, quando Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu de forma unanime que governadores e prefeitos possuíam autonomia para determinar restrições à locomoção das pessoas em Estados e municípios.

Após o episódio fez questão de comemorar cada pequena vitória, principalmente contra seu maior desafeto, o Governador de São Paulo João Dória (PSDB), o tratando como adversário direto nas eleições presidenciais de 2022. Em uma de suas lives semanais afirmou que Dória deveria “procurar outro” para pagar a vacina comprada junto aos chineses, e nas redes sociais fez questão de comemorar a suspensão pela Anvisa dos testes da mesma vacina após a morte de um dos voluntários: “Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”.

Os únicos que receberam afagos foram seus apoiadores, a quem garantiu que independente da vacina que fosse aprovada e comprada, ninguém seria obrigado a toma-la, num aceno ao movimento antivacina que se espalhou em sua base de seguidores. E na divulgação do plano nacional de imunização fez questão de afirmar que ele próprio não tomaria a vacina, se colocando como garoto propaganda negacionista. Imprensa, oposição, cientistas e ativistas de diversas pautas reagiram demonstrando indignação, editoriais condenando sua postura foram enfáticos, notas de repúdio foram escritas às centenas, e proliferaram pedidos de impeachment assinados pela sociedade civil e/ou partidos políticos.

Apesar de passarem de 50 pedidos o presidente da câmara dos deputados, Rodrigo Maia (DEM), simplesmente ignorou sua existência, e semanalmente deu entrevistas e fez pronunciamentos em tom “presidencial”, opinando sobre política e economia, além de criticar abertamente Bolsonaro e seus ministros. Aproveitando-se da inércia, e da ausência dos movimentos sociais nas ruas devido à pandemia, o “Capitão” não apenas se manteve na presidência como surpreendentemente experimentou um aumento em sua taxa de aprovação, e arregimentou uma parcela de 20% do eleitorado que defende com unhas e dentes suas propostas e valores, o colocando como forte candidato à reeleição em 2022. Demonstrando habilidade política, recompôs sua base aliada no congresso nacional, e em 2021 venceu a disputa tanto no Câmara (com Arthur Lira – PP Alagoas) quanto no senado (com Rodrigo Pacheco – PSD Minas Gerais), afastando de vez a possibilidade de abertura de processo de impeachment.

Uma base fiel de seguidores nunca o abandonou nas redes sociais e nas ruas, e conseguiu colocar debaixo do mesmo guarda-chuvas movimentos sociais existentes na sociedade brasileira há décadas, sob o que se convencionou chamar de “bolsonarismo”, que procuramos definir com mais precisão nas próximas páginas. Este livro nasce com o objetivo de discutir como a gestão extremista conduziu o enfrentamento à pandemia do novo coronavírus em nosso país, propondo pensarmos o lugar que a vida e a morte ocupam no Brasil contemporâneo.

Para responder nossa pergunta inicial devemos levar em conta estes elementos conjunturais, somando a eles outros de ordem teórica, nos inserindo nos debates que vem sendo travados acerca dos impactos da pandemia do novo coronavírus. Alguns não hesitam em concluir que o Governo Bolsonaro é genocida, pois suas ações seriam responsáveis por condenar à morte milhares de brasileiras e brasileiros, o que seria mais do que suficiente para indiciar o Presidente criminalmente. Um conceito elaborado por Achille Mbembe (2018) tem sido frequentemente utilizado para definir a política em curso em nossas terras, “necropolítica”, num esforço para enquadrar discurso e prática do atual governo sob uma mesma lógica.

Mas a morte enquanto política é algo exclusivo ao “bolsonarismo”? E quanto à atuação dos demais poderes e governantes das três esferas (federal, estadual e municipal) no enfrentamento à pandemia? Podemos isenta-los de responsabilidade pela perda de milhares de vidas em questão de meses? Acreditamos que o central é identificarmos um sentido para as políticas públicas implementadas durante a emergência do novo coronavírus, verificando em que medida elas foram eficientes para conter ou aprofundar a crise humanitária que teve início em 2020 e adentrou 2021.

Para organizar nossa explanação a fim de responder estas perguntas organizamos nosso trabalho em três partes, divididas em quatro capítulos, na primeira trazemos um capítulo que discute a trajetória da consolidação dos direitos no Brasil, localizando a política “bolsonarista” e a Covid-19 em meio a uma história de desigualdades, violações, massacres e genocídios. Evitamos assim aderir de forma precipitada e equivocada a um autor em evidência, simplesmente transportando seus conceitos para nosso contexto sem o devido cuidado, pois devemos ir além da compreensão do papel assumido pelo atual governo nesta conjuntura caótica. Na segunda, um capítulo que analisa a atuação de Jair Bolsonaro à frente do governo federal durante a pandemia, procurando identificar suas estratégias de atuação em meio à crise que vivemos, para compreender o lugar que morte ocupa em seu discurso e prática, e assim elucidar seu projeto político, avaliando em que medida se aproxima ou distancia da “necropolítica” como forma de exercer o poder. A terceira por sua vez se subdivide em dois capítulos, no primeiro fazermos um balanço das políticas públicas de enfrentamento à pandemia implementadas no país, avaliando sua efetividade com base em dados que demonstram a evolução da pandemia desde a confirmação dos primeiros casos, resultado do trabalho de monitoramento de políticas públicas desenvolvido pelo grupo de Pesquisa e Extensão em Políticas Sociais e Desenvolvimento Urbano (PDUR-PPGSOCIO UFPR), ao qual somos vinculados como pesquisadores. Além dos dados estatísticos apresentamos um instrumento de monitoramento desenvolvido por nosso grupo, a linha do tempo das políticas públicas, que localiza as principais medidas adotadas e seu impacto no combate à Covid-19, neste capítulo apresentamos a linha do tempo de Curitiba. E no derradeiro capítulo de nossa obra trazemos as linhas de mais cinco capitais estaduais e suas respectivas cronologias recuperadas com nossa ferramenta, verificando a validade de nossa hipótese sobre o enfrentamento da pandemia no país, de que este .

As três partes desta obra podem ser vistas como três ensaios que dialogam entre si, passíveis de serem lidos de forma independente, mas que se complementam e conjuntamente atingem um nível de compreensão mais aprofundado do objeto tratado. Os consideramos mais provocativos do que conclusivos, capazes de suscitar debates e incitar reflexões sobre o poder, a pandemia, e a fragilidade da vida em um país marcado profundamente pela desigualdade.

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Código: 128507
EAN: 9786553611429
Peso (kg): 0,500
Altura (cm): 23,00
Largura (cm): 16,00
Espessura (cm): 2,00
Especificação
Autor Julio Cesar Gonçalves da Silva
Editora Kotter Editorial
Ano Edição 2022
Número Edição 1

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Bolsonarismo e necropolítica

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