COMO UM FURACÃO
Meus anos de intimidade com Dostoiévski descortina-nos, por registro do próprio punho de Apollinária Prokofievna Suslova, amante de Fiodor Dostoiévski, aspectos até então desconhecidos da vida sentimental do genial escritor russo.
Suslova foi modelo para os principais personagens femininos dos romances de Dostoiévski. Há traços seus, físicos e de personalidade, por exemplo, em Nastácia Filippovna, de O idiota, e em Pauline, de O jogador.
O insuperável monumento literário erigido por Dostoiévski tem sido por si só suficiente para nutrir os espíritos mais exigentes, jogando para segundo plano o interesse dos leitores sobre facetas e caracteres da personalidade daquele que o pai da psicanálise, Sigmund Freud, afirmou ser o autor da “maior obra da história”, referindo-se ao romance Os irmãos Karamazov (1879). Contudo, justifica-se plenamente a edição brasileira de Meus anos de intimidade com Dostoiévski, uma vez que Apollinária Prokofievna Suslova não apenas passou como um furacão pela vida de Dostoiévski e daí à sua literatura, como também nos legou, em páginas vivazes e ainda interessantes, um válido mosaico do universo de ideias e costumes da sociedade russa em decomposição, sob o regime czarista.
Suslova era a filha mais velha de um ex-servo do conde Cheremetievo, que depois de obter sua liberdade prosperou economicamente, permitindo-se oferecer uma educação de qualidade a seus filhos. Ela pensou em ser médica, mas isso era inconcebível naqueles dias. Acabou se encaixando na sociedade dos jovens rebeldes, ansiosos por liberdade. O tradutor Luís Avelima nos informa que Suslova era altiva, não aceitava brincadeiras, frivolidade, desrespeito, desdenhava da própria beleza, achava-a supérflua, não tinha qualquer vaidade para se enfeitar. Naquela época, não era permitido às mulheres se matricularem nas universidades, mas Suslova frequentava a Universidade de São Petersburgo, flertava com os alunos, ia visitá-los em suas casas, impedindo-os de trabalhar, empurrando-os para a revolta, obrigando-os a firmar abaixo-assinados, a participar de manifestações políticas, a marchar à frente de passeatas, portando uma bandeira vermelha, a cantar a “Marselhesa”, insultando e provocando os cossacos, a espetar os cavalos dos guardas, fazendo com que estes a levassem à delegacia e deixassem-na passar a noite nas grades para, ao sair, ser carregada em triunfo pelos camaradas como vítima gloriosa do “czarismo odiento”. Foi essa a mulher, pois, que levou o homem cristão, casado, escriba incansável a consumar desatinos.
(Nicodemos Sena)
***