“Uma das coisas mais afortunadas que pode nos acontecer em vida é ter vivido uma infância feliz. Eu tive uma infância muito feliz.” São essas as linhas de abertura da Autobiografia de Agatha Christie (1890-1976), as memórias de toda a vida da romancista mais famosa e mais lida de todos os tempos, conhecida mundialmente como Rainha do Crime. Autora de mais de cem livros, a maioria dos quais romances de mistério como os já clássicos Cai o pano e Assassinato no Expresso Oriente, além de contos e peças teatrais, criadora do investigador belga Hercule Poirot e da nada ingênua Miss Jane Marple, entre dezenas de outros personagens, Christie é o exemplo máximo de escritor bem-sucedido que deixou sua marca indelével na literatura. Tendo nascido no seio de uma família abastada, em Torquay, na Inglaterra, casou-se por paixão e trabalhou como enfermeira voluntária durante a Primeira Guerra Mundial (quando adquiriu um conhecimento sobre fármacos e substâncias químicas que lhe seria muito útil na composição dos intrincados assassinatos de seus livros); alcançou o sucesso cedo, em 1920, com a publicação do romance O misterioso caso de Styles. Seguiriam-se dezenas de obras publicadas, um divórcio, um novo casamento; uma carreira triunfante como poucos escritores têm o luxo de experimentar, uma vida peculiar, repleta de viagens e experiências quase impensáveis para as mulheres de sua geração. Durante as décadas em que brindava com regularidade leitores do mundo inteiro com suas fascinantes e criativas histórias de mistério, pouco se soube sobre a vida da autora, ciosa de sua privacidade e avessa a entrevistas. Já na maturidade foi que ela começou, para sua satisfação pessoal, a redação desta Autobiografia, que seria publicada no ano seguinte à sua morte e que é, na verdade, um delicioso livro de memórias. Escolhendo os momentos e as experiências cuja rememoração lhe era mais prazerosa, esta contadora de histórias nata reflete sobre sua infância na Inglaterra do final da era vitoriana, sua juventude no período eduardiano, a Primeira e a Segunda Guerra Mundial; a experiência de criar a filha única, os primeiros passos na carreira literária, o sucesso estrondoso que levou sua obra a ser traduzida em mais de cem línguas, a relação com as próprias obras e seus editores, as expedições que realizou a fim de acompanhar o segundo marido, Max Mallowan, arqueólogo catorze anos mais novo que ela. Como que numa conversa espontânea com um amigo, Christie revela pessoas e fatos que inspiraram alguns de seus personagens e enredos, o que estava acontecendo em sua vida enquanto escrevia determinado romance e também sua sensível percepção sobre um mundo e uma sociedade que, ao longo de sua vida, passaram por mudanças drásticas. Destas deleitáveis páginas, repletas de ternura, emerge, sim, uma mulher madura e feliz, relembrando o próprio passado, mas sobretudo uma mulher ousada, à frente do seu tempo, que trilhou seu próprio e inusitado caminho, numa existência tão interessante quanto literariamente exitosa.